Entrevista a Gastão Cruz (poeta e escritor): "Olhar o real é transfigurá-lo"

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O tempo e a memória, a ausência e o esquecimento, percorrem o seu último livro de poemas (A Moeda do Tempo). Escrever é isso, tornar-se eco do que não pode ser falado, nunca perdendo o sentido de vigilância sobre a linguagem?

São temas da poesia de sempre. O que mais importa, quando se lê um poeta, não é identificá-los, esses ou outros temas, mas entender como cada autor encontra um modo particular de reformulá-los. Os temas ou os motivos não são, só por si, garantia de coisa nenhuma. Num poema como Pobre velha música, de Pessoa, por exemplo, o que lá se diz é secundário, como, de resto, geralmente sucede em relação a como se diz. É irrelevante que o poeta se comova ao ouvir uma "velha música" (nem sabemos se isso é verdade); importante é que ele diga "recordo outro ouvir-te" ou "fui-o outrora agora" - isso é que é extraordinário. Nisso reside a "vigilância sobre a linguagem" de que fala, ou, talvez mais exactamente, a capacidade de criar uma linguagem.

Que foi sempre uma preocupação sua: a exploração das virtualidades da palavra como autor e crítico, bem como a valorização da inovação. Sente, hoje, uma certa indiferença em relação a esses aspectos?

Não se trata de valorizar a inovação pela inovação. Essa é uma espécie de "doença infantil" das vanguardas. O que não quer dizer que isso não tenha sido historicamente importante e não tenha dado contribuições decisivas para a evolução da linguagem poética. Mas esse conceito de inovação, como único e obsessivo objecto do trabalho do poeta, raramente produziu grandes obras. Os poetas mais importantes são os que produzem uma síntese pessoal, e portanto original, de diversas linhas de força da poesia que os precede. Essa síntese implica, na sua elaboração, a descoberta de uma nova maneira de dizer o mundo, sem ignorar que a poesia é um todo que o seu texto vai integrar e, como T. S. Eliot assinalou num ensaio famoso, alterar.

Esse é um problema de hoje ou de todos os tempos?

Se me pergunta o que se passa hoje, tenho de responder que não é muito diverso do que se passou ontem, ou em qualquer época. Aparece sempre quem tente justificar a sua incapacidade de fazer alguma coisa diferente. Então defende-se uma espécie de imobilidade na criação, surgem grupos que produzem linguagens destituídas de qualquer rasgo individualizador, todas semelhantes umas às outras. Aconteceu isso em várias épocas da poesia portuguesa. Por fim, desses grupos, ou dessas ortodoxias, só emerge quem verdadeiramente tinha propostas novas.

Acha que, apesar de não serem exclusivos de hoje, esses problemas se acentuaram na nossa poesia mais recente?

Quando olhamos para o tempo presente, temos de ver que ele sucede a um período que foi dos mais brilhantes da nossa poesia. Muitas das grandes figuras que marcaram o século XX desapareceram, algumas recentemente, e não me parece que nos últimos vinte ou trinta anos, não obstante o aparecimento de um ou outro poeta notável, tenhamos vindo a assistir a uma renovação que reponha o panorama geral em termos qualitativamente equivalentes. Acresce que a presença de pequenos grupos de pressão, bastante activos na defesa de uma mediocratização do discurso poético, mesmo que lhe dêem designações mais sofisticadas, está inquinando, embora somente numa pequena escala, o ambiente.

A sua escrita tem uma tradição, edifica-se numa cultura e num fazer poético relacionados também com o convívio com grandes poetas. Também é memória nesse sentido, ou não?

Considero a poesia um processo contínuo, em que todos os criadores interagem e se relacionam. Tive a sorte de conhecer pessoalmente vários poetas que pude admirar e com eles conviver, durante anos, em alguns períodos diariamente. Acompanhei-lhes a escrita, a saída dos livros. Eram pessoas extraordinárias, nunca nenhum me desiludiu. Quanto à obra, o poeta não tem de estar vivo. Em certas alturas, Sá de Miranda, Camões, Camilo Pessanha, foram para mim presenças quase tão concretas como Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade ou Ruy Belo. Além disso, sempre soube poemas, ou passagens deles, de cor, em grande parte porque dirigi muitos recitais de poesia, cujos ensaios me faziam ouvir o mesmo poema dezenas ou centenas de vezes. Esses versos passaram a fazer parte da minha memória, da minha vida, como uma casa, uma praia, uma paisagem. E, tal como elas, repercutem-se na minha própria escrita.

A Moeda do Tempo é um livro de uma extrema coerência com toda a sua obra e, na linha do percurso poético mais recente, reflecte uma maior nudez da voz. De onde vem a poesia? Da meia claridade?

Procurando lembrar as imagens primitivas da minha vida, as que me ocorrem são as de uma casa com compartimentos grandes e altos, em cujas paredes e tectos se espalhava uma claridade difusa. Escrevi vários poemas em que essa memória, a que se misturam rostos indefinidos, está presente. Esses momentos vagos, incertos, comparecem sobretudo nos meus quatro últimos livros, isto é, a partir de Crateras. Se "a poesia depende da memória", o seu momento inicial é essa "meia claridade", que se identifica com a primeira consciência de existir, com as primeiras imagens da vida.

Há uma questão essencial pela qual este livro passa que é a de a realidade ser sempre irreal. Escreve em Vida das Aves: "novamente/é real o irreal", mas a ideia atravessa vários poemas. Ou seja, a vida é construção, a imaginação parte da descrença no real?

Não, a imaginação só pode partir do real. É ele o ponto de partida de que dispomos. Mas o real assume muitas vezes, aos nossos olhos, uma dimensão de irrealidade. Olhá-lo é transfigurá-lo. O tempo pode ter aqui também um papel importante. Ver, ao longo de décadas, o mesmo farol, no mesmo exacto lugar, acendendo e apagando, ouvir o repetido canto das aves, que, na noite, quase só assim anunciam a sua presença, podem ser experiências que já quase parecem irreais; falar delas, descrevê-las, é trazer para o plano do real alguma coisa que já parece situar-se fora dele. E este transporte pode ser feito pela poesia. O real passará então a ser a sua própria verbalização, passará a residir na linguagem do poema. |

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